ARLA/CLUSTER: Porque querem os galegos ver televisão (e ouvir radio) portuguesa ?

João Costa > CT1FBF ct1fbf gmail.com
Segunda-Feira, 6 de Janeiro de 2020 - 06:43:58 WET


Nas complicadas negociações para a formação do novo governo espanhol, um
dos vários acordos assinados tem uma cláusula curiosa: o BNG (Bloco
Nacionalista Galego) exigiu em troca do seu voto a favor de Pedro Sánchez,
que as televisões (e as rádios) portuguesas começassem a ser transmitidas
na Galiza. Este pedido não é novidade: a transmissão das nossas televisões
lá por cima está prevista na Lei Paz-Andrade (em galego: «Lei nº 1/2014, do
24 de marzo, para o aproveitamento da lingua portuguesa e vínculos coa
lusofonia»), aprovada em 2014 pelo Parlamento da Galiza — por unanimidade!
Todos os partidos, da esquerda à direita, concordaram: querem ver televisão
portuguesa na Galiza e querem o ensino do português nas escolas galegas. O
certo é que a lei não teve muitos efeitos — o que o acordo assinado pelo
BNG e o PSOE prevê é a aplicação das normas já aprovadas (o acordo prevê,
na sua versão em galego, «).

Talvez estes pedidos surpreendam muitos portugueses. Mas são naturais. O
galego e o português estão tão próximos que, na Galiza, há uma antiga
discussão sobre se são ou não a mesma língua. Sejam ou não, o certo é que
um galego compreende um português sem grandes dificuldades (principalmente,
diga-se, se o português falar um sotaque do Norte). Incentivar o ensino do
português e a transmissão das nossas televisões na Galiza permite aos
galegos aproveitar a sua própria língua para comunicar com todos os
falantes de português, que ainda são uns quantos.

Para nós, é uma surpresa. Mas não devia ser: a nossa língua tem origem no
que já se falava no noroeste da Península no momento em que Afonso
Henriques se tornou rei de Portugal. Era uma língua que não se chamava
português (os falantes chamar-lhe-iam «linguagem») e que se falava no que é
hoje a Galiza e o Norte de Portugal.

Se andarmos uns quantos séculos para a frente e chegarmos aos anos 80 do
século XX, o que vemos? Em Portugal, a língua é chamada, há séculos,
português e é a língua nacional e oficial para lá de qualquer dúvida (além
de ser falada noutros países). Na Galiza, a população continua a falar uma
língua que descende da língua que já era falada na época de Afonso
Henriques, mas o castelhano foi usado como língua oficial durante séculos.
Entre o que se fala em Portugal e a Galiza há, agora, tanto tempo depois,
várias diferenças, tanto na fonética, como no vocabulário. Mas o mais
extraordinário, tendo em conta o tempo que passou desde que apareceu a
nossa fronteira a norte (uma das fronteiras mais antigas do mundo!), é a
proximidade entre o que se fala na Galiza e em Portugal.

Pois bem, quando a Galiza ganha autonomia, nos anos 80, a língua torna-se
oficial, em conjunto com o castelhano. Perante a proximidade entre galego e
português, revelaram-se duas tendências: uma delas assume o galego como uma
língua separada do português, defendendo uma ortografia com «ñ» e «ll».
Outra tendência defende que o galego deve procurar integrar-se no mundo de
língua portuguesa, defendendo uma ortografia com «nh» e «lh». A questão,
claro, é mais complexa: há também questões vocabulares e sintácticas (e
muitas divisões dentro de cada tendência).

Nos anos 80, ganhou a tendência do «ñ» e do «ll» e é essa a ortografia
oficial, usada pelo governo da região, presente nas placas das ruas,
ensinada nas escolas. A outra tendência (chamada «reintegracionista») não
desapareceu e ainda hoje está activa em muitos meios galegos. Nos últimos
tempos, parece haver uma aproximação entre os dois campos. A Real Academia
Galega, que defende a ortografia oficial, escolheu Ricardo Carvalho Calero,
escritor e académico galego falecido em 1990, o grande nome do
reintegracionismo, como nome a homenagear no Dia das Letras Galegas de 2020
— na Galiza, esta é uma honra como poucas. Deixo um vídeo em que, nos anos
80, Carvalho Calero discute «o porvir da língua». É fácil ver como as
palavras que Carvalho Calero estão muito próximas das nossas palavras.
Basta reparar que diz «a língua» e não «la lengua»…

Para nós, em Portugal, as discussões entre galegos são difíceis de
acompanhar. Para muitos portugueses, a dificuldade começa em ouvir o
galego. Não só ouvimos muito castelhano quando vamos à Galiza (nas últimas
quatro décadas, o uso do galego diminuiu de forma marcada, principalmente
nas cidades), como sentimos a estranheza da fonética bastante diferente da
nossa. Mas não há que enganar: se não estamos perante a nossa língua,
estamos perante a mais próxima das línguas. Tão próxima que há muitos
galegos que querem ouvir as nossas televisões… É um espanto — que ainda se
torna maior se pensarmos que até a saudade é (também) galega! Sim, também
os galegos se afadigaram a discutir a saudade como sentimento muito seu,
propalando a sua mítica intraduzibilidade. Enfim, seja ou não intraduzível,
o certo é que a palavra existe: em português — e em galego!

Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas
Palavras. É autor da Gramática para Todos — O Português na Ponta da Língua.
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