ARLA/CLUSTER: Afinal as Selvagens são ilhas ou rochedos? A confusão começa aqui

João Costa > CT1FBF ct1fbf gmail.com
Segunda-Feira, 9 de Setembro de 2013 - 12:57:59 WEST


.É o território português mais a sul. Espanha não contesta esta
soberania sobre as Selvagens, mas veio recordar que as fronteiras
marítimas na zona estão em aberto

O estatuto das Selvagens, pedaços de terra a 163 milhas da ilha da
Madeira e a 82 das Canárias, está por definir. Portugal diz que são
ilhas; Espanha, simples rochedos. É por causa disto que as fronteiras
marítimas nesta zona se mantêm hoje em aberto: consoante o estatuto
das Selvagens, assim o sítio no mar onde passará a linha entre os dois
países. O que falta é estes entenderem-se sobre isso - bilateralmente
ou, em caso de desacordo, numa instância como o Tribunal Internacional
do Direito do Mar - e esta é que é a história.

Então, onde fica aqui a questão da plataforma continental à volta das
Selvagens, falada nos últimos tempos? Esta polémica mistura no mesmo
saco, o que lança a confusão, a extensão da plataforma continental, a
Zona Económica Exclusiva (ZEE) em redor das Selvagens e o seu
estatuto. Na realidade, o estatuto não tem a ver com a proposta
portuguesa de extensão da plataforma, ainda que possa haver, como
veremos adiante, repercussões sobre este projecto.

As Selvagens saltaram para os jornais com o anúncio de que o
Presidente da República, Cavaco Silva, iria visitá-las a 18 e 19 de
Julho, dormindo lá, como afirmação de soberania e da habitabilidade
das ilhas, e essa visita foi divulgada no fim de Junho. A polémica
luso-espanhola sobre as ilhas foi então reavivada pelo envio por
Espanha, a 5 de Julho, já depois de se saber da visita de Cavaco
Silva, de uma declaração (nota verbal) sobre as Selvagens à Divisão
para os Assuntos do Oceano e da Lei do Mar.

Nessa nota, Espanha quer "recordar" que já tinha protestado noutra
nota, de 2009, quando Portugal apresentou a proposta de alargamento da
plataforma, na Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) da
ONU. E diz que não aceita que as Selvagens tenham ZEE, a gerar se
fossem ilhas, e que considera rochedos, só com direito a Mar
Territorial.

Antes de mais, o que é a extensão da plataforma? Vários países têm
obtido dados sobre o fundo do mar, para determinar onde, em frente aos
seus territórios, ocorre a transição da crosta continental (ou da
crosta emersa das ilhas) para a crosta oceânica. Enquadrados pela
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Lei do Mar), esses
trabalhos permitirão que tenham jurisdição sobre o solo e subsolo do
mar para lá das 200 milhas, desde que provem que a plataforma
continental não acaba antes dessa distância e tem continuidade
geológica. A plataforma pode alargar-se só a partir do limite máximo
da ZEE; e esta última pode ir até às 200 milhas, dando, além do fundo
do mar, jurisdição sobre a água.

Ora, à volta das Selvagens, o que está em causa não é a extensão da
plataforma portuguesa (sublinhe-se: para lá das 200 milhas). Em linha
recta para sul, as ZEE dos dois países, independentemente de onde se
traçará a linha entre elas, batem logo uma na outra. Pelo que não há
nenhuma plataforma para alargar aí.

A questão de um conflito de interesses, devido a uma plataforma
continental portuguesa gerada a partir das Selvagens, também não se
põe para leste, em direcção à costa africana. As distâncias entre as
Selvagens, as Canárias e a costa africana não deixam grande espaço
para lá das 200 milhas. E a haver aí extensões da plataforma, a
discussão será entre Espanha, que tem as Canárias mais perto da costa
africana, e Marrocos.

Assim sendo, resta o alargamento da plataforma portuguesa do lado
oeste da Madeira. No sumário executivo da sua proposta entregue na
CLPC, há um mapa a cores: vê-se uma mancha amarela que parte da
Madeira para sudoeste e já vem de Portugal Continental. O que esta
mancha dá a ver é a continuidade geológica da crosta continental nessa
zona e que ela se prolonga para oeste e para sul. Portanto, a proposta
portuguesa, para esta área, partiu só das ilhas da Madeira e de Porto
Santo. As Selvagens não foram tidas aqui.

É isto que Portugal respondeu agora a Espanha, numa nota verbal de 6
de Setembro em reacção à espanhola de 5 de Julho: diz que a plataforma
continental portuguesa "a oeste do arquipélago da Madeira constitui o
prolongamento natural do território emerso da ilha da Madeira e do
território de Portugal Continental". E frisa: essa proposta "não
inclui o prolongamento natural do território emerso das ilhas
Selvagens devido à sua localização natural", acrescentado: "Em
resultado disso, as ilhas Selvagens não estão reflectidas, em nenhuma
circunstância, na proposta portuguesa à CLPC."

Porém, os dados portugueses indicam que este prolongamento vai até
muito a sudoeste da Madeira, onde, aí sim, já pode haver sobreposição
com uma zona de interesse espanhola. Espanha ainda não apresentou a
sua extensão da plataforma para a área oeste das Canárias, mas numa
informação preliminar entregue na CLPC, em 2009, tem um mapa com
potenciais sobreposições com países terceiros. Portugal é um deles,
precisamente na parte final a alargar a sudoeste da Madeira.

Se Espanha não aceitar que a plataforma portuguesa chegue até a essa
zona, terá de ter dados da plataforma das Canárias a ir até ali. A
CLPC - que aprecia as propostas dos países e se pronuncia apenas se
têm direito a alargar a plataforma e até onde - poderá até decidir a
favor de Portugal e Espanha na área de sobreposição.

Nesse caso, os dois países terão, posteriormente, de chegar a acordo
sobre como fazer a delimitação da plataforma. Aliás, é o que ocorrerá
em frente à Galiza, em que Portugal e Espanha apresentaram formalmente
a mesma área de interesse para as suas plataformas e concordaram em
fazer aí a delimitação mais tarde.

De resto, a nota espanhola de 2009, que Espanha recordou agora como
tendo sido um "protesto" (na realidade, não falava das Selvagens nem
da ZEE), já ia nesse sentido: que Espanha "não colocava nenhuma
objecção" sobre a proposta portuguesa para a área das ilhas da
Madeira, desde que não prejudicasse os seus direitos de extensão a
oeste das Canárias; e que tinha vontade de proceder, "de comum
acordo", à delimitação da plataforma entre os dois países.

A questão das Selvagens é pois outra: se há direito a uma ZEE em redor
delas, a dividir entre Portugal e Espanha, caso sejam consideradas
ilhas. Aí, a linha das ZEE passaria a meio das 82 milhas entre as
Selvagens e as Canárias. Ou se há apenas direito, para Portugal, a um
Mar Territorial, de 12 milhas, e uma Zona Contígua até às 24 milhas,
sem lugar a uma ZEE - isto no caso de rochedos.

Como ilhas, empurrariam a ZEE portuguesa para sul. Como rochedos, a
ZEE espanhola gerada desde as Canárias prolongar-se-ia até às
Selvagens e até as passaria. A divisória das ZEE seria assim traçada
entre as Canárias e a ilha da Madeira, separadas por 245 milhas. As
Selvagens ficariam no meio da ZEE espanhola, rodeadas pelo Mar
Territorial.

Para ter estatuto de ilha, segundo a Lei do Mar, um território tem de
poder ter habitantes humanos e actividade económica. Portugal
argumenta que as Selvagens são habitadas por vigilantes da natureza,
que até um Presidente da República lá dormiu, e que houve, até aos
anos de 1960, actividade económica baseada nas cagarras (aves
marinhas), que alimentavam a população da Madeira. Só não são caçadas
hoje, argumenta-se, porque as Selvagens são reserva natural desde 1971
(têm a maior colónia mundial de cagarras).

Efeitos indesejados da disputa

Também aqui, cabe aos dois países entenderem-se sobre a fronteira das
suas ZEE, o que terá implícito o estatuto das Selvagens. O assunto
pode acabar no Tribunal Internacional do Direito do Mar, mas nunca
seria a CLPC a decidir sobre a ZEE.

Se a ampliação da plataforma portuguesa não passa pelas Selvagens, se
não houve factos novos a esse nível, e se a delimitação da ZEE não
passa sequer pela CLPC, a pergunta que fica é: porquê a nota de
Espanha agora? Por que quis lembrar o assunto?

Ainda que esta fronteira marítima esteja em aberto e as Selvagens não
estejam directamente ligadas à extensão das plataformas dos dois
países, esta indefinição pode ter consequências indesejadas nas
pretensões portuguesas para a plataforma. Em caso de disputa numa
área, mesmo sem sobreposição de plataformas, a CLPC pode nem apreciar
as propostas dos países em contenda (Portugal espera que a apreciação
da sua comece em 2015, não devendo estar concluída antes de 2017).
Parte das propostas, neste caso a área da Madeira, ficaria parada no
tempo.

A este facto não será alheio o cuidado na parte final da nota verbal
portuguesa, dizendo que o país "confirma ausência de disputas por
resolver com Espanha, apesar de não haver acordo sobre as fronteiras
marítimas entre Portugal e Espanha".

Fonte: Por Teresa Firmino
09/09/2013 - 00:00 in Jornal Publico



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