ARLA/CLUSTER: "Terrascópio" - Astrónomo projecta telescópio que usa a Terra como uma lente gigante
João Costa > CT1FBF
ct1fbf gmail.com
Quarta-Feira, 21 de Agosto de 2019 - 12:55:59 WEST
"Terrascópio" se aproveita do efeito refrator da atmosfera para
ampliar os objetos celestes – um telescópio de solo equivalente
custaria US$ 35 bilhões.
Por A. J. Oliveira in Super Interessante
Uma crise silenciosa ameaça o futuro da pesquisa astronómica. É que,
para manter o extraordinário progresso que as últimas décadas
trouxeram ao entendimento do Universo, os astrónomos precisam enxergar
melhor e mais longe. E não tem jeito: isso implica na construção de
telescópios cada vez maiores e mais sofisticados. Mas a complexidade e
o preço estratosférico desses projectos colocam em xeque sua
viabilidade.
Só uma Nasa da vida tem orçamento grande o bastante para pagar US$ 10
bilhões pela construção do magnífico telescópio espacial James Webb,
que deve suceder o Hubble em 2021 com seu espelho de 6,5 metros de
diâmetro (o do Hubble mede 2,4 m). Não sem muitos atrasos no
cronograma, é claro. Mesmo a próxima geração de telescópios de solo
(isto, localizados na superfície da Terra, e não em órbita) está
enfrentando terríveis desafios para obter financiamento e tocar as
obras em dia.
Tanto o Telescópio Gigante de Magalhães (GMT), que terá espelho de 30
metros, quanto o Telescópio Extremamente Grande (ELT), cujo diâmetro
será de 39 metros, vão custar mais de US$ 1 bilhão. Ambos estão em
construção no deserto do Atacama, no Chile. Ou seja: para a
astrofísica seguir avançando, será preciso usar a criatividade e
projetar instrumentos que sejam potentes sem serem tão caros. É o que
promete uma pesquisa recente.
Em um artigo aceito para publicação no periódico Publications of the
Astronomical Society of the Pacific e com manuscrito disponível no
banco arXiv, o astrónomo David Kipping, da Universidade de Colúmbia,
em Nova York, descreve um conceito inovador para realizar observações
do Universo. O plano é usar a atmosfera terrestre como uma lente
gigante capaz de ampliar corpos celestes localizados a centenas,
milhares, milhões ou até biliões de anos-luz daqui.
Já que o custo de construir lentes e espelhos colossais é proibitivo,
aproveitar estruturas e processos naturais que cumpram o mesmo papel é
uma grande ideia. E ela não é nova, por sinal. Einstein já havia
previsto há mais de um século que a gravidade de objectos com muita
massa como o Sol ou um aglomerado de galáxias provoca desvios na luz
de estrelas ainda mais distantes que cruzam com eles. São as chamadas
lentes gravitacionais.
Astrónomos usam o fenómeno há décadas para observar regiões longínquas
do Universo. Kipping propõe fazer algo parecido com a Terra: tirar
proveito da refração que a atmosfera provoca em raios de luz que a
atravessam para usá-la como a lente gigante de um instrumento com
dimensões verdadeiramente planetárias. Bastaria posicionar um
telescópio espacial mais ou menos na distância lunar, o ponto focal do
“terrascópio”, para que ele capte a luz refratada.
Mais especificamente, a espaçonave deveria apontar constantemente para
a Terra a uma distância de 360 mil quilômetros — um pouco mais perto
que a Lua. Ela não precisaria de um espelho tão grande. Bastaria um
diâmetro de um metro para ampliar 45 mil vezes a luz dos astros em
foco após um tempo de exposição de 20 horas. Grosso modo, colocar a
atmosfera da Terra entre o telescópio e a estrela sendo observada é
como colocar óculos ou uma lupa na frente dele. Tamanha potência só
seria equiparada por um telescópio de solo com inimagináveis 150
metros de diâmetro.
Kipping calculou que um ainda menor, de 100 metros, custaria US$ 35
bilhões para ser construído. Essa quantia supera os orçamentos de 2018
da NASA e da Fundação Nacional da Ciência (NSF), dos EUA, combinados.
Ou seja: o terrascópio é a única saída. Mas não pense que construi-lo
seria moleza. Há diversos desafios no projeto, a grande maioria tem a
ver com a dinâmica peculiar da lente atmosférica. Apesar de quebrar um
galhão, ela está longe de ser perfeita.
A começar pelo fato de sua densidade variar conforme a altitude:
quanto mais para o alto, menos espessa ela se torna. Logo, a luz que
atravessa a atmosfera superior sofre menos refração que aquela que
cruza a parte inferior. Como as nuvens absorvem luz, é preciso ajustar
o terrascópio para que colete apenas fótons que penetram só 14
quilómetros na atmosfera — e não passam nem perto da camada de nuvens.
Outros problemas que devem ser levados em conta envolvem a absorção
específica de determinadas frequências pelas moléculas dos gases, além
do fato de a atmosfera contrair ou expandir de acordo com variações na
temperatura. Toda lente tem suas imperfeições. Mas Kipping estudou a
fundo esses e muitos outros aspectos, e está convicto de que o
terrascópio tem futuro. Agora só falta a NASA comprar a ideia.
Mais informações acerca da lista CLUSTER