ARLA/CLUSTER: A boa educação dos "five nine"

João Gonçalves Costa joao.a.costa ctt.pt
Segunda-Feira, 29 de Agosto de 2011 - 10:48:24 WEST


"Preguntaréis: Y dónde estan las lilas?
Y la metafísica cubierta de amapolas?
Y la lluvia que a menudo golpeaba
sus palabras llenándolas
de agujeros y pájaros?

Os voy a contar todo lo que me pasa."(*)

Perguntam-me alguns bem intencionados amigos porque não apareço nas bandas.

Vou contar-vos tudo o que se passa.

Sou radioamador encartado desde 1965. Carta nº 44/CR4 com exame de telegrafia, obrigatório para a classe C. Radio escuta às bandas de amador desde os dez anos de idade.

O radioamadorismo é uma força tão grande ao longo da minha já longa vida que determinou até a minha profissão de engenheiro, que venho exercendo com honra e prestígio há mais de quarenta anos.

O que se passa é que o radioamadorismo deixou, infelizmente, de ser um "serviço de radiocomunicações que tem por objectivo a instrução individual, a intercomunicação e os estudos técnicos efectuados por amadores".  É, agora, na maior parte do tempo de utilização de um bem colectivo e precioso - o espectro radioeléctrico - uma actividade algo banal e até estúpida.

As frustrações   e  os fracassos pessoais  invadiram e intoxicaram este passatempo que foi, outrora,  gratificante e nobre. Daí a necessidade da competição , dos concursos  - "o meu Mercedes é maior do que o teu". É assim que praticamente em todos os fins-de-semana, sem excepção, as nossas bandas ficam invadidas por gordos atletas de copo de Coca-Cola em cima do linear de 10 kilowatts  que debitam estupidamente fiadas intermináveis de "five nine", não sei para quê, se é sempre "five nine".

O contacto entre estações - o QSO - que devia ser apenas um pretexto para trocar informação técnica, para trocar impressões ou, meramente, para saudar os amigos e confrades, reduz-se agora à insignificante e banal formalidade de obter mais um ponto no" concurso do penico" ou mais um prefixo para o diploma da treta.
O cartão QSL  que outrora era apenas uma cortesia é agora a finalidade última. Desesperadamente cobiçado. Por vezes, até falsificado.

É por isso que no QRZ.COM eu peço: Please DO NOT QSL. (Heresia?) Há anos, num QSO com uma estação OH,em telegrafia (modalidade onde eu, ingenuamente,  continuo a esperar alguma nobreza) depois de lhe ter transmitido  o preâmbulo rotineiro que apraz à cortesia: QTH IS. NAME IS.recebi como resposta "que não lhe interessava conhecer o número do meu sapato". Se não fora a boa educação que recebi dos meus progenitores e o respeito que aos meus mestres devo, eu poderia por meu turno responder-lhe que muito menos me interessava o tamanho da sua ferradura. Mas calei. E deixei-o sem resposta.
Isto é apenas um dos exemplos que recordo. Muitos outros já esqueci.

Quanto à competição, devo dizer que, sem nunca ter sido grande desportista, sempre apreciei a competição comigo mesmo - "Antonius versus Antonius" - onde tantas e tantas vezes tenho sido derrotado por incapaz de vencer a minha enquistada preguiça.

Com reconhecida vaidade, que merece penitência, envio noutra mensage uma fotografia de uma parte do meu laboratório de reformado.
E pergunto:
-Com tanta coisa bonita para fazer aqui em casa valerá a pena perder tempo a ouvir e enviar os  estúpidos "five nine"?


Cordiais 73,


António
CT1TE


(*) Pablo Neruda: "Antologia Poética"

Fonte: ct-comunicacoes-e-tecnologias





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