Re: ARLA/CLUSTER: Portugal - Comunicações Aeronáuticas

Radiophilo radiophilo gmail.com
Quinta-Feira, 21 de Janeiro de 2010 - 03:02:58 WET


Caro Mourato,

A longevidade do AM nas comunicações aeronáuticas em VHF tem diversos
motivos, entre os quais as suas qualidades:

1. Para comunicações com sinais débeis, o AM é o que permite maior
inteligibilidade, isto é, mesmo com sinais marginais pode conseguir-se
mais facilmente compreender o interlocutor.

2. Em caso de simultaneidade de comunicações, o AM possibilita que em
muitos casos se escutem ambas as comunicações, ainda que com alguma
degradação. Mesmo se uma das transmissões está "lá no fundo", pelo
menos a sua presença pode ser detectada. Isto contrasta bem com o FM
em que o efeito de captura é neste caso desvantajoso (embora benéfico
noutros contextos).

3. Em sectores de ATC de grande dimensão, o AM possibilita o uso de
uma técnica chamada de "Offset Carrier" ou "CLIMAX"  para colocar
várias estações terrestres no mesmo canal.
Isto reporta-se ao uso de canais de 25 kHz em que a largura de banda
da transmisão se fica pelos 6 kHz, sendo que as estações terrestres,
embora ocupando o mesmo canal, emitem em frequências distintas e não
se interferem.
Esta técnica é também usada em alguns sectores do ATC português e quem
for mais curioso e medir as frequências das portadoras das nossas
estações, verá aquilo de que falo. Como disse, isto possibilita a
cobertura rádio de zonas extensas com múltiplas estações terrestres no
mesmo canal.

4. O sistema de comunicações de VHF-AM foi recentemente melhorado com
um aumento de capacidade por redução do espaçamento de canais. Os
canais de 25 kHz continuam a existir, nomeadamente nos sectores onde o
"offset carrier" é usado, mas em largas porções do espectro a
capacidade do sistema pode agora triplicar.

5. As comunicações em VHF-AM são uma espinha dorsal do tráfego aéreo
internacional (civil ou militar) e suponho que qualquer alteração a
este sistema deva obedecer a critérios muito apertados:
- Alterações graduais ou faseadas com sobreposição
- Impacto mínimo (ou suavemente faseado) sobre os procedimentos de operação
- Solidez técnica com probabilidades de falha reduzidíssima
- Tecnologia extensamente experimentada e demonstrada
- Benefícios económicos evidentes para todos os interessados.

Este último aspecto pode parecer deslocado, mas a verdade é que uma
alteração tecnológica desta natureza irá trazer custos muito elevados
para os operadores e tem-se demonstrado que estes não costumam
investir sem uma clara perspectiva de retorno.

6. Não há queixas significativas do desempenho deste sistema. Embora
haja receios, e haja também perspectivas e propostas de melhorias, a
verdade é que o sistema funciona, e funciona bem.

Dito isto, sou de opinião de que o caminho para as comunicações
aeronáuticas digitais é irreversível, pelo menos no âmbito da aviação
de transporte internacional.

Possivelmente começará pela implementação em larga escala do CPDLC,
isto é, serviços de ATC pedidos e autorizados via "datalink". Este
processo está muito avançado e dispensará a comunicação de voz em
larga escala. O seu uso é particularmente consensual para a fase de
cruzeiro ou para voos oceânicos ou em regiões remotas,  em que a vida
dos pilotos é muito tranquila. Pode assentar em distintas tecnologias
ocupando todo o espectro de comunicações, como por exemplo o HFDL, o
VDL, e o SATCOM. Prevê-se que substitua as comunicações de voz em
HF-SSB nos voos oceânicos. A sua utilização é normalmente feita
através de terminais multifunções com um pequeno ecran e teclado,
atravéz dos quais os pilotos já controlam boa parte dos sistemas das
aeronaves e fazem a gestão do voo.

Nas fases de terminal e aproximação, esta tecnologia é muito
contestada porque reduz muitíssimo a percepção que os pilotos têm do
ambiente que os rodeia. Chama-se a isto a "percepção situacional",
isto é, a imagem mental que os pilotos fazem de todo o tráfego à sua
volta, deduzida pela escuta das "tardes da Júlia".

A voz digital é o passo lógico seguinte, é claro. Recorrendo apenas ao
senso comum, eu diria que o seu uso merece um balanço muito cuidado
entre benefícios e riscos.

O atraso na transmissão da voz digital é de facto um problema a
equacionar. Não é de todo admissível um atraso muito grande, não só
pelo tempo perdido mas também pelas dificuldades de comunicação que a
desorientação e "falta de jeito" devidas a tal atraso poderiam causar.
Além do atraso puro, pode haver complicações devidas a factores
humanos.
Por outro lado, admito que a aviação civil não tenha requisitos de
latência das comunicações mais apertados do que as de forças militares
em combate e estas recorrem cada vez mais a comunicações digitais,
portanto há aqui motivos para pensar que este problema pode ser
superado.

Como disse antes, o AM é reconhecidamente mais tolerante à degradação
da relação sinal ruído do que as comunicações digitais e o seu uso em
situações limite é vantajoso.
Por outro lado também as fases de chegada e aproximação, em que as
aeronaves estão "em cima" das estações terrestres, são aquelas em que
a relação sinal/ruído é melhor. São sempre comunicações em linha de
vista, sem obstáculos, e com sinais fortes. Aqui os pilotos não fazem
DX. Penso que desde que o sistema de comunicações seja bem
dimensionado para o tráfego necessário, possa ser concebível o uso
seguro de comunicações digitais.
Aliás, as comunicações via SATCOM recorrem à voz digital e são também
normalmente seguras e estáveis.

A questão complica-se depois quando se considera que existem outros
sectores da aviação que partilham a mesma infraestrutura (espaço aéreo
e respectivos serviços de gestão de tráfego) mas que têm requisitos
bem menores. Falo evidentemente da aviação geral e mesmo da de
recreio. Como se pode ver, o assunto é complexo e dá pano para mangas.

Finalmente, penso que a questão não tem que ser vista a preto e branco.
Admito que sempre existirão alguns canais de emergência em VHF-AM,
como os 121.5 e possivelmente outros. A aeronáutica não é conhecida
por baixar os padrões de segurança nem desprezar as últimas linhas.
Acredito que a pressão causada pelo aumento do tráfego aéreo
internacional, e que tem levado a tão drásticos desenvolvimentos
tecnológicos, leve também a que se revejam e modernizem as
comunicações entre os pilotos e os ATCs, pelo menos para a
generalidade desse tráfego, contemplando meios alternativos para o
tráfego minoritário e/ou situações excepcionais.

Espero não ter sido maçador com estas divagações.

Cumprimentos,
António Vilela
CT1JHQ




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