ARLA/CLUSTER: Off Topic: Crescente contorversia sobre o Modelo Padrão da Cosmologia e a Primeira Evidência Direta da Inflação Cósmica

João Costa > CT1FBF ct1fbf gmail.com
Domingo, 23 de Março de 2014 - 17:03:23 WET


A inflação cósmica: fé de mais
 Domingos S.L. Soares
 21 de março 2014

Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova
das coisas que se não veem.
Hebreus 11, 1 — Paulo de Tarso, ca. 70

Andar com fé eu vou, que a fé não costuma “faiá”.
Andar com fé — Gilberto Gil, 1985

Prólogo

Este artigo trata essencialmente de questões de fé. As palavras do
sábio turco apresentam a definição de fé, enquanto que os versos do
músico baiano declaram o otimismo em relação às perspectivas de seus
desígnios. O conceito de fé, eminentemente religioso, tem também o seu
lugar no domínio científico, mas sempre em pequeníssima dose. De fato,
a fé é inerente a toda e qualquer atividade humana. Ela só chama a
atenção quando presente em doses elevadas, ou seja, fé de mais
assusta, pela desvinculação exagerada da realidade. Em outras
palavras, anuncia comportamento irregular. Tratarei de um caso destes,
no domínio da ciência, especificamente, na cosmologia moderna, no
Modelo Padrão da Cosmologia (MPC).

O MPC, conhecido vulgarmente como Modelo do Big Bang ou do Estrondão,
é um exemplo vivo onde a fé é de mais. O modelo só prevalece porque os
seus defensores têm a inabalável fé de que várias suposições inerentes
ao MPC um dia tornar-se-ão comprovadas. A inflação cósmica é uma
destas suposições. Menciono outras a seguir, associadas ao balanço de
matéria-energia do universo, segundo o MPC.

matéria bariônica: 4%, sendo 0,5% de matéria luminosa e 3,5% de matéria escura
matéria não bariônica (só escura): 23%
energia escura: 73%
total: 100%

O modelo atual do universo é espacialmente plano. O espaço-tempo é
curvo já que, neste instante cósmico, o modelo possui expansão
acelerada. A aceleração é causada pela energia escura.

No balanço descrito acima há pelo menos três artigos de fé. O modelo
exige matéria bariônica, que é outro nome para a matéria usual,
constituída por prótons e nêutrons, em quantidade superior ao que é
observado. Há dezenas de anos tem-se a fé de que em algum dia os
bárions faltantes serão encontrados. O MPC exige também grande
quantidade de matéria exótica, a chamada matéria não bariônica. Há
mais de 30 anos tem-se a fé de que ela será encontrada, apesar de não
se saber nem o que ela seja. E agora o artigo de fé maior, a crença no
“monstro” desconhecido da energia escura, a qual acelera a expansão do
universo e nos remete a um futuro em que até os constituintes mais
básicos da matéria serão finalmente desintegrados! Tal excrescência
natural, cuja existência foi proposta há mais de 20 anos, é totalmente
desconhecida — sabe-se apenas que deve ser uma forma de energia.
Existem inúmeras teorias sobre a sua natureza, mas permanece a
inabalável fé de que um dia ela será encontrada.

Em cima de tudo isto, em cima de fé de mais, ainda sobra espaço para
mais um artigo de fé, qual seja, a inflação cósmica, o objeto deste
singelo artigo.

A notícia

No dia 17 de março passado, o Harvard-Smithonian Center for
Astrophysics anunciou em nota para a imprensa, sob o título “Primeira
Evidência Direta da Inflação Cósmica”, a seguinte notícia:

“Há quase 14 bilhões de anos, o universo em que habitamos explodiu
para existência em um extraordinário evento que iniciou o Estrondão.
Na primeira fugaz fração de um segundo, o universo expandiu
exponencialmente, esticando-se muito além da visão de nossos melhores
telescópios. Tudo isto, é claro, era apenas teoria.

Pesquisadores da colaboração BICEP2 anunciaram hoje a primeira
evidência direta desta inflação cósmica. Seus dados representam também
as primeiras imagens de ondas gravitacionais, ou ondulações no
espaço-tempo. Tais ondas têm sido descritas como os “primeiros
tremores do Estrondão”. Finalmente, os dados confirmam uma conexão
profunda entre mecânica quântica e relatividade geral.
(...)” A nota completa está em www.cfa.harvard.edu/news/2014-05.

Comentarei os dois primeiros parágrafos reproduzidos em tradução livre
acima. Trata-se de uma pérola da arrogância pseudocientífica que
assola a comunidade cosmológica dominante, cujo fundamento é a fé.
Vamos lá.

O extraordinário evento que, do nada, explodiu é a inflação cósmica,
ou seja, uma perturbação estrondosa na quietude e limpidez do nada.
Foi esta perturbação provocada por algo ou por alguém? Muito bem, ela
foi provocada por Alan Guth, através de palavras escritas em 1980 no
prestigioso periódico científico estadunidense Physical Review D.
Guth, britanicamente, deu o preciso instante do ocorrido: é a tal
“fugaz fração de um segundo” mencionada acima. A poesia dos termos
diminui o impacto do que Guth quis dizer, i.e., a fração de 1 segundo
dividido por dez trilhões de trilhões de trilhões. Em potência de dez:
10-37 segundo. Foi este o momento da ocorrência extraordinária. Em
seguida a nota comete um salto extemporâneo: o universo expandiu (...)
muito além da visão de nossos melhores telescópios. O universo criado
pela inflação é muito maior do que a “pequena” porção que tornar-se-ia
acessível aos observadores humanos.

BICEP, Background Imaging of Cosmic Extragalactic Polarization
(Imageamento do Fundo de Polarização Extragaláctica Cósmica), é o nome
genérico de uma série de experimentos destinados a medir a polarização
da Radiação de Fundo de Micro-ondas (RFM). BICEP2 é um destes
experimentos. Trata-se de um radiotelescópio localizado no Polo Sul,
onde o meio ambiente seco, gelado e com enorme limpidez atmosférica
reproduzem da melhor forma, em terra, as condições prevalecentes em um
observatório espacial. Pois bem, os pesquisadores do BICEP2
encontraram os sinais da inflação cósmica, ocorrida há 14 bilhões de
anos. Mesmo tendo sido produzidos há tanto tempo, eles foram
detectados agora. E com a fidedignidade suficiente a ponto de serem
anunciados em vários meios científicos e leigos de comunicação. A
putativa descoberta justifica desta forma todos os recursos
financeiros nela investidos. E tem mais. Não só a inflação cósmica foi
evidenciada. De um só golpe, o BICEP2 esclareceu vários outros
mistérios da ciência moderna: a existência das ondas gravitacionais,
uma previsão ainda não comprovada da Teoria da Relatividade Geral de
Albert Einstein (1879-1955) e a natureza quântica da própria
gravitação einsteiniana. Não é só isto, no entanto. Para que a
inflação cósmica seja uma realidade é necessário que o próprio MPC
seja válido! Então, de quebra, o BICEP2 comprovou necessariamente a
existência da matéria escura bariônica, da matéria escura não
bariônica e da energia escura. Nada mal para um só experimento. Bota
fé que a fé não costuma “faiá”, canta o bom baiano.

O Estrondão

Deixemos de pessimismo, tenhamos fé, e falemos um pouco sobre as
realizações do BICEP2. Farei o possível para explicar o que eu mesmo
tentei entender a partir das diversas notas entusiasmadas divulgadas
recentemente. Farei primeiro uma analogia do tecido espaçotemporal com
a superfície tranquila e límpida de um lago. Peçamos a ajuda de Alan
Guth em nossa história. Quer dizer, vamos agora brincar de Guth.

Guth lança uma pedra para o alto, de forma que ela caia sobre o lago.
A pedra produzirá ondas circulares que se propagarão pela superfície
do lago. Estas ondas, diremos, são circularmente polarizadas. Mas ao
mesmo tempo em que estas ondas circulares são produzidas também o são
outras ondas de polarizações diferentes, as quais são imperceptíveis
aos nossos olhos. Outros modos de polarização são produzidos, na
linguagem da polarimetria. Entre estes modos estão modos lineares,
i.e., perturbações lineares na superfície do lago, semelhantes às
oscilações para frente e para trás de uma criança numa gangorra.

Voltemos agora ao nosso objeto, a inflação cósmica. Guth joga agora
uma “pedra”, que tem o sugestivo nome de infláton, sobre a singeleza
do nada — atenção, o tecido espaçotemporal ainda não existe. Guth vai
criá-lo com o infláton, através dos eventos que se seguem. Duas coisas
simultâneas ocorrem: o infláton cria o tecido do espaço-tempo e
perturba-o, como uma pedra o faz na superfície do lago. As ondas
produzidas no tecido espaçotemporal denominam-se ondas gravitacionais.
São análogas às ondas mecânicas que ocorrem na superfície do lago. Da
mesma forma como ocorre no lago, temos aqui também vários modos de
polarização.

As ondas gravitacionais, por sua vez, produzem perturbações
equivalentes na RFM. A RFM torna-se, portanto, polarizada com vários
modos diferentes. O modo detectado pelo BICEP2 foi um modo linear,
devido a facilidades experimentais, apesar desta perturbação ser muito
menor do que outros modos. A RFM é um fundo observado no céu em
micro-ondas extremamente uniforme. O modo detectado pelo BICEP2
representa um contraste na lisura da RFM de 1 parte em 10.000.000. O
que significa isto? Pense na superfície espelhada de um telescópio,
por exemplo, o conhecido Telescópio Espacial Hubble. O seu espelho
possui falhas de lisura de 1 parte em 10, no máximo! Agora, 1 parte em
dez milhões corresponde a um desvio de lisura extraordinariamente
pequeno e, consequentemente, extremamente difícil de ser observado
experimentalmente, principalmente se considerarmos a enorme quantidade
de fontes de ruído — instrumentais e de emissões celestes espúrias —
existentes, e que perturbam em conjunto a lisura da RFM.

Epílogo

A evidência da inflação cósmica é esta perturbação de 1 parte em dez
milhões. E ela foi encontrada. Não tenhamos dúvida, tenhamos fé, o
firme fundamento das coisas que se esperam.

Termino pedindo desculpas por qualquer coisa, os erros são meus.
Afinal de contas, eu não sou Guth.


Professor Catedrático Jubilado - Domingos Savio de Lima Soares
Possui graduação em Fisica - Departamento de Física - Universidade
Federal de Minas Gerais (1976), mestrado em Astrofisica - Departamento
de Física - UFMG (1982) e doutorado em Astrofisica - Groningen
University, Groningen, The Netherlands - Kapteyn Astronomical
Institute (1989). Estagio de pos-doutoramento - Astronomy Department -
Center for Radiophysics and Space Research - Cornell University,
Ithaca, NY, USA (1997). É professor e astronomo (Universidade Federal
de Minas Gerais, Departamento de Física, (aposentado em 2011). Tem
experiência na área de Ciências Exatas e da Terra, atuando
principalmente nos seguintes temas: astrofisica extragalactica,
galaxias binarias, grupos de galaxias e aspectos historicos e
conceituais da cosmologia.



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