ARLA/CLUSTER: “NOS BONS VELHOS TEMPOS...EM QUE OS RADIOAMADORES IAM AOS ERVANÁRIOS”

João Gonçalves Costa joao.a.costa ctt.pt
Terça-Feira, 26 de Abril de 2011 - 13:58:06 WEST


Muitos dos novos Colegas Radioamadores, certamente já escutaram nalguns QSO’s de Amadores mais antigos, o termo “ervanário”. Era este o nome, pelo qual se designavam os Ferro Velhos que serviam de “supermercados” aos Radioamadores dos anos 60’s, 70’s e 80’s.

Nessa altura, como devem de calcular, não era fácil aos amadores poderem dispor de material de alguma qualidade para fazerem as suas experiências com emissores, receptores, pré-amplificadores de antena, antenas, fontes de alimentação, etc...etc...
Além de que, no mercado comercial nessa altura não abundavam Firmas que dispusessem de material vocacionado para esta área especifica de radiocomunicações, pois os esquemas e artigos de revistas que dispunha-mos nessa altura eram de origem Americana, Inglesa ou Alemã, cujo mercado interno desses Países estavam mais desenvolvidos comercialmente.

Daí que, a maior dificuldade que logo nos surgia quando pensávamos deitar mãos á obra em qualquer construção, era a aquisição dos componentes, sem fugirmos ás especificações dadas pelos seus autores, evitando assim os amargos de boca, dores de cabeça e o desespero do insucesso da construção, que por vezes durava semanas e nalguns casos meses.
Nessa altura em Portugal mais concretamente em Lisboa, haviam a RUALDO, RADIO LUX, GELOSO, ONDEX e PINTO LEITE na Cidade do Porto.

De todas, só uma ou outra disponibilizava acessórios ou componentes avulso e a preço acessível ás bolsas dos radioamadores que nessa época auferiam salários médios de 3-4 mil escudos mensais.
Estes Ferro Velhos geralmente e salvo algumas excepções, adquiriam ás Forças Armadas (Exército, Marinha e Força Aérea) equipamentos obsoletos, avariados, fora de serviço e que geralmente provinham dos diversos Quartéis espalhados pelo País e pelas antigas Províncias Ultramarinas de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, Goa Damão e Diu, pois nessa altura Portugal estava abraços com uma Guerra Colonial de má memória para todos nós.

Esses equipamentos depois de transportados para os ditos “ervanários”, destinavam-se a ser desmantelados, aproveitando-se tudo o que era cobre, latão, alumínio, ferro e então vendidos para a Siderurgia Nacional, ao kilo onde seguidamente eram derretidos nos altos fornos e os diversos metais aproveitados para outras aplicações.

Na pré-fase do desmantelamento nos “ervanários”, alguns Radioamadores tomavam conhecimento através de outros Amadores, pelos próprios empregados dos Ferro Velhos ou até pelos seus donos, que tinham recebido material proveniente do Exército, da Marinha ou da Força Aérea e que seguidamente tudo ia ser danificado.

Era aqui que começava a verdadeira correria aos “ervanários”, na esperança de se conseguirem os melhores materiais em condições de serem aproveitados, para além da sua qualidade, visto a origem ser Militar e consequentemente, apresentarem padrões e níveis de qualidade superiores aos vulgarmente encontrados no mercado Nacional.

Compravam-se nestes locais, a muito baixo custo, coisas preciosas para as nossas experiências, tais como:
-Condensadores variáveis de baixa capacidade isolados a porcelana, da marca “Jonhson” que eram utilizados em equipamentos de VHF e HF nos andares de RF dos diversos andares dos emissores ou nos PI’s de saída de RF; Xtais de diversas frequências militares, mas que serviam perfeitamente para as nossas experiências com transverters, conversores, emissores, receptores; condensadores electrolíticos de alta capacidade 1000 a 50.000 microF, isolados a 100VDC da SPRAGUE ( melhor fabricante Mundial ) para as fontes de alimentação; condensadores de mica isolados a 3KV; isoladores de porcelana para antenas de HF; desmultiplicações mecânicas para elaboração de rotores de antena de fabrico caseiro; microfones; auscultadores; caixas metálicas para os diversos equipamento que se construíam nessa altura pelos amadores; válvulas militares com equivalência civil, tais como QQV03-12, QQV06-40, 6L6GT, 817, 813, 6146B, entre outras.

Lá se conseguiam também arranjar, diversos tipos de parafusos, porcas, anilhas, miliamperímetros, microamperimetros, voltímetros, fio de cobre esmaltado para bobinas, chapa de alumínio para construção de chassis ou caixas para os diversos equipamentos a construir.

Como devem de calcular, eram tempos diferentes dos de hoje, pois era sempre dificil conseguir arranjar aquilo que necessitávamos para realizar os nossos projectos, ao invés de hoje, que vamos á loja e compramos...compramos no EBAY, ou em ultima análise, mandamos vir de qualquer local do Mundo via Internet, assim tenhamos dinheiro para o fazer.

Numa manhã de sábado, um grupo de 7 Radioamadores aqui da zona de Lisboa, do qual eu fazia parte (e o já falecido Diogo CT1EJ), combinámos e fomos a um “ervanário” ali para os lados do Poço Bispo, num velho armazém que alojava uma quantidade enorme de equipamentos de comunicações do Exército, que tinham acabado de chegar do Depósito de Material do Exército em Linda-a-Velha, fazia apenas umas horas.

Aquela informação tinha sido fornecida ao Colega Diogo CT1EJ, através do seu Pai que era funcionário da antiga DSR-Direcção Serviços Radioeléctricos dos CTT em Barcarena, uma vez que era Amigo do dono do armazém em questão.

Na Sexta Feira á noite, o Colega CT1EJ-Diogo, dava indicação a todo o pessoal do grupo, via rádio em VHF:
“...malta...amanhã, todos equipado com alicates de corte e chaves de parafusos Philips e normais....quem tiver alicates de grifto ou chaves inglesas podem levar...se puderem levar também serrotes pequenos, levem, pois vão fazer falta....”.
E lá fomos em romaria, até ao local onde nos tinham informado que havia “volfrâmio”....ou seja.... sucata para podermos desmanchar á vontade...cortar fiarada, aproveitar suportes de válvulas, válvulas, xtais, condensadores, trimmers, transformadores, electrolíticos, desmultiplicações mecânicas, pequenos motores, caixas metálicas, baterias, auscultadores, chaves de morse, isoladores para antenas de HF, componentes diversos e outro tipo de material, estava ali á nossa inteira disposição sem qualquer tipo de restricções.

Entrámos... e fomos recebidos pelo proprietário do armazém, que por indicação do Pai do nosso colega Diogo CT1EJ, nos conduziu até ao local onde estavam todos os equipamentos, que algumas horas antes tinham sido recebidos.

Aquilo deveria ter sido digno de ver de longe....aquelas 7 caras de “parvos” a olhar para aquele amontoado de equipamentos, alguns com aspecto de novos, sem uma única besliscadura....ali mesmo á mão de semear.

“Vamos....fiquem á vontade....e se precisarem de ajuda... dêem uma assobiadela, que eu venho logo até aqui num instante.!!!
Ah....e tenham cuidado rapaziada.... não se magoem aí nas chapas e nos arames, tenham cuidado com isso....vejam lá.!!! “
Olhámos uns para os outros... com ar de aparvalhados, sem saber por onde começar.!!!!
Bom....vamos lá começar por aqui por este lado, disse o CT1EJ.
E lá fomos cada um para seu lado á procura do tal “volfrâmio” que todos procuravamos fazia tanto tempo.

Começaram então os alicates e também as chaves de parafusos a funcionar, depois as chaves inglesas e finalmente os serrotes.!!!
Só se ouviam os ruidos das ferramentas a serem aplicadas aos equipamentos ali existentes, e começaram a surgir então so resultados das pesquisas.
“É pá oh...Diogo...olha aqui...tantos Xtais novinhos em folha dentro, desta caixa de esferovite...até parece que nunca foram usados.!!!!”

Ao fundo, bem “encavalitado” em cima duma pilha de caixas de madeira, com inscrições de códigos militares, assim como o local do destino que teve o seu conteudo, estava este vosso amigo...triturando um amaranhado de fios com um alicate de corte, que cortava optimamente, manteiga numa tarde quente de Verão.

Do outro lado dos fios, estavam uns 20 e tantos mini-interruptores de tres posições (on-off-on), duma qualidade belissima e que deveriam ter desempenhado multiplas funções num painel de controlo de algum equipamento militar.

Espreitei um pouco mais abaixo e os meus olhos cairam mesmo em cima duma coisa meio esquisita, que naquela altura não estava bem a ver o que era.

Calmamente...desci um pouco do local onde me encontrava, colocando um pé mesmo em cima duma caixa muito limpa e reluzente que me despertou desde logo a atenção.
Que raio seria aquela coisa tão esquisita, meu DEUS !!!
O local era escuro e a falta de luz confundia-me, daí que só com muito custo consegui descobri finalmente o que era aquela coisa tão esquisita, que parecia a frente de uma catedral cheia de botões pretos e reluzentes de ambos os lados, varios comutadores que lhe dava um aspecto imponente.

Entretanto o resto do grupo , continuava na sua aventura silenciosa em busca de novos materiais, de chaves de parafusos numa mão, alicates de corte na outra.
Alguns elementos do nosso grupo, já tinham as algibeiras dos casacos, blusões e calças atulhadas de xtais, condensadores, interruptores, potenciometros e outros acessorios de utilidade.
As nossas mãos estavam cheias duma gordura viscosa, que colava em tudo em que mexiamos.
Um dos colegas estava radioso, pois tinha encontrado uma peça bastante valiosa, um transceptor AN-GRC-9 de CW e AM, chave de morse, bolsa protectora, auscultadores, bolsa com antena, alimentador e respectivos cabos de interligação.

O colega Diogo CT1EJ, já tinha arranjado uma colecção apreciavel de válvulas QQV03-20, QQV03-40, 6146, 6360, e uma grande colecção de Válvulas miniatura Nuvistores, que estavam muito em voga naquela altura, nos diversos equipamentos de comunicações.
Os meus olhos finalmente fixaram-se numa placa dourada, gravada a letras pretas que dizia: “ US Navy Receiver VHF-UHF Mod. BC-??? “.

Chamei então o colega CT1EJ para lhe comunicar o achado.
No seu tom habitualmente “pachorrento” o Diogo quando olhou para aquela peça de arte e comentou: “ é pá oh Gonçalves....isto é uma “máquina infernal”....é um receptor de V e UHF da Marinha Americana, que deve ter andado montado nalgum navio de guerra, mas que está num estado de conservação espectacular.
É pá...vai já falar com o homem do armazém e vê lá se ele te deixa levar isso tudo inteiro, porque vale a pena.!!!”
Lá fui....muito a medo, á procura do senhor do armazém, na espectativa de que ele me deixasse levar aquela “bizarma” para casa.

Foi com muito custo, que consegui convencer o senhor, que aquilo era mal empregado estar a desmanchar, pois iria danificar o receptor totalmente, impossibilitando-me assim de poder usufruir das possibilidades daquela “máquina infernal”, tal tinha sido classificada pelo CT1EJ.
Ele lá concordou... embora com muitas reservas, pois... não sabia como é que eu iria transportar aquela coisa até casa, uma vez que pesava uns 35 kilos.
Fizemos logo ali as contas, 35 Kilos vezes 5 escudos, era igual a cento e setenta e cinco escudos.
Lá se tinham ido as minhas economias do mês !!!!
Agora só esperava que aquilo estivesse a funcionar bem.
Quando eu próprio me apercebi do peso que aquela “coisa” tinha....fiquei para morrer.!!!
Senti logo um calafrio pela espinha acima... estava já a imaginar, como é que iria levar aquele “monstro” para casa dos meus Pais.???

O Colega Diogo CT1EJ pareceu que leu os meus pensamentos e prontamente se ofereceu para transportar a “máquina infernal” até aos Olivais em Lisboa, pois eu na altura não dispunha de transporte próprio.

Agora tinha de resolver outro problema grave....
Como é que eu iria convencer a minha Mãe, a poder instalar aquela “coisa” dentro do meu quarto.???
Faltava-me agora esta....mas tinha de resolver o problema e depressa.
Tive de inventar uma história muito bem arquitectada para levar de vencida a minha Mãe que era uma Mulher muito difícil de virar e convencer !!!!

A solução foi de dizer-lhe que me tinham oferecido aquele receptor, caso contrário tínhamos o caldo entornado.!!!!

Depois de escolhido o local exacto na minha pobre bancada onde iria ficar o receptor, havia de ligar o dito e verificar se a “coisa” funcionava.
Após uma verificação mais pormenorizada sobre o painel traseiro do receptor, constatei que o mesmo era alimentado a 110VAC e não aos 220VAC da nossa rede eléctrica publica.
Pronto….já está tudo “lixado” pensei logo, agora que a minha Mãe queria ver aquela “coisa” a funcionar pois achou a história que eu lhe tinha vendido, muito mal contada.!!!

Tive de recorrer então ao meu vizinho do prédio ao lado, o Rui Sá Nogueira CT1VC, para me ceder algum auto-transformador de 220VAC/110VAC que aguentasse a corrente de consumo daquela “bisarma”.
Por sorte o Rui estava em casa e depois de ouvir a minha história aflitiva, foi procurar nas suas velharias, algum transformador que servisse para as minhas necessidades e que me tirasse daquela angustia.

Passado alguns minutos, ouvi o Rui CT1VC dizer em vóz alta “…está cheio de sorte oh…Gonçalves….está mesmo aqui um transformador que é o indicado para o seu receptor….”.
Surgiu então de dentro de uma enorme caixa de madeira, um grande transformador que dizia Auto-Transformer AC 220/110V 50 to 60 Hz.

E pronto lá fui eu porta fora, com o transformador cedido pelo meu vizinho e grande Amigo CT1VC-Rui Sá Nogueira, que mais uma vez, me resolveu um problema, que inicialmente me parecia difícil de solucionar.

Após ligar o auto-transformador ao receptor…benzi-me 10 vezes…rezei 10 Padre Nossos …10 Avé Marias… fechei os olhos…liguei o botão do ON-OFF…e…Pum…!!…Aquela coisa acendeu e poucos segundos depois já fazia uma sopradeira do caraças….aquilo parecia que estava a funcionar.!!!!
Liguei-lhe uma antena de VHF de 5 elementos que estava montada no alto do telhado da prédio onde morava, rodei o botão de sintonia na range dos 130 aos 150 MHz…e….olá….que é isto.????
Não podia ser…o CT1ZB da Figueira da Foz, o Colega Vasco Aguas a chegar com 59+30 dBm no s-meter do receptor….

Fiquei para morrer de contente, até que enfim tinha uma recepção da banda dos 2 metros como devia de ser, pensei eu.
Claro que depois foi só explorar as diversas ranges que o receptor cobria, e até recebia a banda do FM Comercial (em mono) que era uma maravilha.!!!!
Fui logo á cozinha chamar a minha Mãe para lhe dar a noticia, até para ela ver que aquilo que eu lhe tinha dito era só um “bocadinho mentira”, o que ela achou muita graça, daquela “coisa” tão grande e pesada até dar musica com tão boa qualidade.
E foi assim, que mais uma vez, consegui levar de vencida a irritação da minha Mãe, que coitada… tanta paciência tinha para aturar as minhas “parvoíces” de um “puto” que estava a começar a sonhar.

Á minha Mãe e ao meu Pai, agradeço tudo o que me aturaram e tudo quanto me toleraram, para que eu conseguisse um dia… vir a ser aquilo… que já tinha traçado com objectivo na vida….UM RADIOAMADOR.


Elaborado por:
Francisco Gonçalves
CT1DL
2010

Fonte: Blogue de CT1DL em: http://ct1dl-ct0334-ct1dl.blogspot.com/




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